sábado, 28 de abril de 2012

Igualdade racial por vias libertárias

"What I ask for the Negro is not benevolence, not pity, not sympathy, but simply justice. [Applause.] The American people have always been anxious to know what they shall do with us. (...) Everybody has asked the question, and they learned to ask it early of the abolitionists, "What shall we do with the Negro?" I have had but one answer from the beginning. Do nothing with us! Your doing with us has already played the mischief with us. Do nothing with us! If the apples will not remain on the tree of their own strength, if they are wormeaten at the core, if they are early ripe and disposed to fall, let them fall! I am not for tying or fastening them on the tree in any way, except by nature's plan, and if they will not stay there, let them fall. And if the Negro cannot stand on his own legs, let him fall also. All I ask is, give him a chance to stand on his own legs! Let him alone! If you see him on his way to school, let him alone, don't disturb him! If you see him going to the dinner table at a hotel, let him go! If you see him going to the ballot- box, let him alone, don't disturb him! [Applause.] If you see him going into a work-shop, just let him alone,--your interference is doing him a positive injury. (...) Let him fall if he cannot stand alone! If the Negro cannot live by the line of eternal justice, so beautifully pictured to you in the illustration used by Mr. Phillips, the fault will not be yours, it will be his who made the Negro, and established that line for his government. [Applause.] Let him live or die by that. If you will only untie his hands, and give him a chance, I think he will live. He will work as readily for himself as the white man. (...) the war has proved that there is a great deal of human nature in the Negro, and that "he will fight," as Mr. Quincy, our President, said, in earlier days than these, "when there is reasonable probability of his whipping anybody." [Laughter and applause.]"

Frederick Douglass, no seu discurso de 1865, "What the black man wants"

http://www.frederickdouglass.org/speeches/index.html


A discussão sobre a validade das cotas raciais nas universidades públicas voltou a ganhar força após a decisão do STF sobre a constitucionalidade de tais cotas. Não pretendo aqui discutir se esta decisão foi acertada ou não, mesmo porque não tenho competência jurídica suficiente para interpretar o que a constituição diz ou não diz. O que pretendo é discutir se este tipo de política deveria existir em primeiro lugar.

A primeira coisa que preciso enfatizar é que não discordo das intenções das cotas raciais. Não nego de modo algum que existe racismo no Brasil, e que isso tem um forte papel na falta de oportunidades para negros e que por sua vez isso constitui um forte motivo pelo qual a proporção de negros em universidades é menor do que a proporção de negros na população, enquanto a proporção de negros presos e/ou pobres é maior do que a proporção populacional. Entretanto as intenções não são suficientes para julgar uma política, na verdade elas são pouco relevantes. O que importa é o efeito.

As cotas raciais (e tudo o que for dito aqui pode ser estendido às cotas sociais também) nada mais são do que parte da cruel rotina do Estado de quebrar as pernas das pessoas para oferecerem a muleta depois. O principal efeito desta política é criar um elo de dependência dos negros com o Estado, tal qual o elo estabelecido previamente entre senhores e escravos. É interessante lembrar que um dos argumentos esdrúxulos contra a abolição da escravidão era de que os senhores tinham um papel imprescindível em "educar e civilizar" os escravos. As cotas raciais são a versão moderna deste argumento, trocando apenas um senhor por outro.

Outra coisa importante de ser ressaltada é que as cotas raciais NÃO são uma política que beneficia uma classe de negros que precisa de ajuda. As cotas beneficiam apenas alguns indivíduos desta classe, e que estão longe de serem os que mais precisam de algum apoio. Se seguirmos uma teoria Rawlsiana da justiça de existência de deveres em ajudar os "less fortunate" (não sei qual seria uma tradução boa deste termo) de uma sociedade, estamos claramente errando o alvo. Aqueles que são realmente mais excluídos, e têm pouquíssimas chances de prosperarem, não chegam a completar o ensino médio para poderem ingressar na faculdade. O custo de oportunidade de estudar tanto tempo para essas pessoas é alto demais. Os benefícios gerados pelas cotas são direcionados para a elite de uma classe desprivilegiada, o que não resolve um problema de desigualdade (muito pelo contrário).

Se quisermos realmente promover um ambiente de isonomia racial, temos que mirar toda a classe e não apenas uma minúscula parte dela. O que é preciso fazer não é entregar algumas muletas para uma dúzia e ficar com a consciência limpa; o que é necessário é parar de quebrar as pernas de todas as pessoas.

A tomada estatista contemporânea dos movimentos sociais que buscam defender minorias desprivilegiadas afastou os libertários deste tipo de causa. Não podemos, entretanto, esquecer que o nascimento do nosso movimento político sempre foi uma luta contra privilégios e a favor da igualdade - sempre entendida como isonomia, é claro - também. E acredito que a melhor solução para a desigualdade racial no Brasil seja a solução libertária, e por isso não podemos esquecer que existe este tipo de desigualdade. Dizer que não existe nenhum tipo de diferença de tratamento entre negros e brancos seria implicitamente dizer que os negros são inferiores - afinal seria a única explicação que sobraria para explicar as diferenças de proporção que mencionei no início do texto.

Então, afinal, como parar de quebrar as pernas dos negros? Como desamarrar as mãos deles e dar uma chance que eles caminhem com suas próprias pernas, como Frederick Douglass pediu no século XIX? Acredito que a principal frente a ser defendida é o fim da guerra contra as drogas; uma guerra que é claramente direcionada aos mais pobres, e, na maioria das vezes aos negros. Existe uma repressão maior a não-usuários de drogas que moram em favelas do que usuários que moram na zona sul, e isso não é mero acaso. Imagine quantas vidas são destruídas pelas prisões de jovens que trabalham como vapor, somente por participarem de uma troca voluntária que não agride ninguém? Imagine as oportunidades de crescimento se a polícia apenas os deixassem sozinhos, como pediu Douglass?

Outras políticas que seriam muito mais eficientes em diminuir a desigualdade racial do que as cotas seriam (a) acabar com a universidade pública "gratuita" (ênfase nas aspas) e (b) acabar com a exigência do diploma.

O ensino superior "gratuito" não existe - não existem almoços grátis afinal. Quem paga pela educação superior (que é muito cara por sinal) são exatamente aquelas pessoas que não vão estudar na universidade. Sim, se você está estudando em uma universidade pública quem está pagando para você fazer isso é aquele garoto que largou a escola na quarta série para trabalhar e ajudar os pais. Eu estudo em uma universidade pública e tenho bastante vergonha de admitir isso, mas é verdade. E forçar a entrada de alguns negros na universidade pública não resolve este problema. Conforme já argumentei, aqueles que mais precisam de ajuda não terminam o ensino médio, e definitivamente o que eles não precisam é pagar pelos estudos de pessoas que eles sequer conhecem, somente por compartilharem a cor da pele.

Acabar com a exigência do diploma é outro fator que ajudaria muito aquelas pessoas que não dispõem de condições de passar entre quatro e seis anos dedicadas a estudos somente para poderem trabalhar em algum emprego melhor assalariado. Muitas vezes o que acontece atualmente é que pessoas mais pobres são obrigadas a pagar uma universidade particular de quinta categoria, perder tempo assistindo aulas onde não aprendem nada relevante, somente para terem um diploma que lhes permite trabalhar em um ofício que poderia ser exercido mesmo sem todo o tempo gasto na universidade. A exigência de diploma é uma reserva de mercado elitista, que prejudica a tal isonomia desejada pelas cotas.

Existem outras diversas coisas a serem feitas, como acabar com a burocracia que empreendedores precisam enfrentar, o que permitiria que pequenos empreendedores informais em comunidades pobres pudessem ter certos direitos que infelizmente o Estado só permite que os que ele considera "legais" possam ter. Acabar com as interferências na relação empregador-empregado, pelo mesmo motivo acima. Garantir a propriedade das pessoas mais pobres, também reduzindo as exigências de escritura, alvará, e todas estas burocracias inúteis que também afetam muito mais as pessoas mais pobres. E, claro, reduzir impostos - afinal estes sempre recaem na parcela mais pobre da sociedade.

Conforme Frederick Douglass disse, se existir justiça, tudo o que precisamos fazer é deixar os negros sozinhos, porque eles são capazes de tomar conta de si mesmos. Infelizmente a justiça a qual Douglass se referia - igualdade perante a lei - não existe no Brasil, haja visto toda a diversidade de privilégios, proibições, e limitações a liberdade existentes na lei brasileira. Instituir novos privilégios, como as cotas (sejam raciais ou sociais), não ajudam de modo algum em garantir a igualdade perante a lei. Não precisamos de novos privilégios. Precisamos acabar com os existentes.



quarta-feira, 25 de abril de 2012

Aldous Huxley e conhecimento tácito

Nota: Conforme eu disse no primeiro post desse blog, as pessoas reagem a incentivos e até agora os meus incentivos não foram muito propícios para escrever aqui. Mas, enfim, vou tentar outra vez.

Um conceito o qual sempre achei um pouco difícil de assimilar é a idéia de conhecimento tácito, especialmente como descrito por Michael Polanyi. A idéia do autor é que podemos saber mais do que podemos dizer - ou seja, existem certos tipos de conhecimentos que possuímos que sequer compreendemos o suficiente para explicá-los. Em Hayek, isso pode ser expresso como os conhecimentos particulares de tempo e lugar, que são informações subjetivas que são exclusivamente individuais, exatamente porque não podemos passar este tipo de conhecimento para outras pessoas tão facilmente.

Hayek vai ainda mais além ao falar sobre a pretensão do conhecimento, que poderia ampliar o conceito do Polanyi de "podemos saber mais do que podemos dizer"  para "acreditamos saber mais do que aquilo que realmente sabemos, que ainda é mais do que aquilo que nós podemos dizer que sabemos", o que deixa as coisas ainda mais confusas.

Porque estou escrevendo isso? O último livro que li foi o A Ilha (Island), do Aldous Huxley, por indicação de um amigo. Em certa parte da história (que é muito boa e vale a pena ler, especialmente pra quem já leu Admirável Mundo Novo, porque existem várias referências que só quem leu AMN vai entender), o protagonista está visitando o sistema educacional da Ilha de Pala, e quando ele entra em uma sala de aula de Filosofia Elementar Aplicada para a 5ª série (só em Pala mesmo), o professor está ensinando algo muito parecido com o conceito de conhecimento tácito, de uma maneira razoavelmente esclarecedora, apesar de um pouco modificada. Segue abaixo o trecho (ênfases minhas):

"- Os símbolos são públicos - estava dizendo um homem ainda jovem próximo ao quadro-negro, no momento em que Will e Mrs. Narayan entravam na sala. Desenhou uma série de pequenos círculos e os números: 1, 2, 3, 4 e n. "Estes números representam o povo", explicou. Depois, partindo de cada um dos pequenos círculos, desenhou uma linha que os ligava a um quadrado existente à esquerda do quadro-negro. Escreveu um "S" no centro do quadrado. "S é o sistema de símbolos que o povo usa quando quer conversar entre si. Todos falam a mesma língua: inglês, palanês, esquimó, dependendo do local onde vivem. As palavras são públicas. Pertencem a todos os que falam uma determinada língua. Estão catalogadas nos dicionários. Observemos agora o que está acontecendo lá fora". Dizendo isso, apontou para uma janela aberta (...) O professor desenhou um segundo quadrado do lado oposto do quadro, marcou-o com a letra "A" (para designar acontecimento) e ligou-o aos círculos por meio de linhas. "O que acontece lá fora é público" - disse ele. "Quando alguém fala ou escreve, isso também é público. Mas as coisas que ocorrem no interior destes pequenos círculos são individuais. Individuais".

Pondo a mão sobre o peito, repetiu: "Individual" - friccionou a testa e disse: - Individual. - Tocou as pálpebras e a ponta do nariz com o indicador - Agora vamos fazer uma experiência simples: Digam a palavra "beliscar". (...) Isso é uma palavra pública. Todos podem procurá-la no dicionário. Mas agora eu quero que vocês se belisquem. (...) Pode alguém sentir aquilo que o seu vizinho está sentindo?

(...)- Parece que houve vinte e três dores diferentes e independentes. Vinte e três somente nesta sala. Quase três milhares de milhões em todo o mundo, sem acrescentarmos as dores de todos os animais. Cada uma delas é estritamente individual. Não há nenhum modo de transferir a experiência de um centro da dor para outro. Nenhuma comunicação a não ser indiretamente através do "S"(...) Prestem atenção a isso: exige somente uma palavra pública, "dor", para designar os três milhares de milhões de experiêcias individuais, embora cada uma delas possa diferir tanto da outra quanto o meu nariz difere do de vocês (...). Uma única palavra define coisas e acontecimentos que pela sua natureza se assemelham entre si. E, sendo pública, é impossível que abranja todas as múltiplas variantes de um mesmo acontecimento."

Depois o professor conclui contando uma longa história budista sobre Mahakasyapa e o sermão da flor do Buda, uma história também iluminadora mas que não é necessário ser transcrita. É uma excelente passagem a ser citada para facilitar a explicação desse conceito - que também tem a sua parcela tácita que só pode ser compreendida individualmente, sendo impossível comunicar tudo o que forma a idéia.