sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Da não naturalidade do capitalismo


Depois de ter falado sobre porque acho que defender o capitalismo com base na sua eficiência é um erro, vou escrever sobre um outro erro, um pouco menos comum, mas entretanto muito explorado pelos críticos. Este erro é defender o sistema capitalista como algo inerente à natureza humana. Do lado dos defensores, este tipo de erro muitas vezes está associado ao jusnaturalismo: muitas vezes existe uma confusão entre defender que a propriedade privada é um direito natural com que o sistema de mercado seja natural. A existência de propriedade privada não é suficiente - apesar de necessária - para que uma sociedade aproveite a liberdade e prosperidade trazidas por uma adesão ao que pode ser chamado de capitalismo, ou sistema de livre mercado. Apesar das ideias sobre o direito natural não me persuadirem muito, não acredito que seja incompatível defender tal ponto e ao mesmo tempo entender que o capitalismo não é algo da natureza do ser humano. Vou tentar argumentar rapidamente por que não acredito que o capitalismo seja algo "natural".

O jusnaturalismo não é o único motivo pelo qual tal argumento é utilizado. Podemos lembrar, por exemplo, do argumento de Adam Smith de que o homem possuiria uma tendência natural de realizar trocas, pela capacidade única de falar que o ser humano possui. Primeiro, o ato de troca também não é algo suficiente para a existência do que pode ser chamado de capitalismo. Tanto troca quanto propriedade privada são coisas que existiram praticamente em toda a história da humanidade. O mesmo não é verdade sobre o capitalismo.

Historicamente, o que pode ser observado é que algo ocorreu com a humanidade a partir de meados do século XVIII, algo espetacular que tirou o mundo de uma eternidade de miséria para um crescimento estrondoso.

Algo não natural ocorreu no final do século XVIII. O capitalismo mostrou que nada é impossível de mudar.
Ao mesmo tempo em que a renda per capita disparou, a população mundial também explodiu

 O "capitalismo" foi uma quebra de paradigmas que ocorreu inicialmente no noroeste europeu e que se espalhou posteriormente por (quase) todo o mundo. O que fez com que este crescimento exponencial pudesse ser observado foi uma maré de inovações, criando um aumento de produtividade constante que continua a crescer até hoje (mesmo em períodos de crise). Tais inovações foram geradas por indivíduos que queriam mudar o presente em que viviam, alterar uma natureza de miséria. A natureza inovativa que é essencial ao capitalismo é, de certa forma, anti-natural.

Entender que o capitalismo não é algo natural também é importante para entendermos que não necessariamente estamos vivendo no melhor sistema possível. É possível mudar para melhor, e uma atitude progressista é desejável. Entretanto é necessário entender o que permitiu este crescimento para que o progresso seja tomado de fato na direção certa. O importante, portanto, é tentar entender qual foi a grande mudança que ocorreu no final do século XVIII e que permitiu tal mudança dramática de paradigma da condição natural humana que era a miséria absoluta, para que assim possa-se seguir mudando em direção a algo melhor. Esta mudança, pelo o que a minha leitura sugere, decorreu de uma alteração de ideologia - saindo da falta de mobilidade de classes, dividida entre uma aristocracia e uma classe servil, comum em todas sociedades antigas, em direção a uma mentalidade de busca da prosperidade através do mercado, um processo de "aburguesamento" da sociedade. Uma mudança do modo de ganhar a vida do guerreiro (ou do jogo de soma zero) para o modo de ganhar a vida do burguês (através de mútuos ganhos pela cooperação mercantil) foi o grande promotor desta mudança observada nos gráficos.

Este "aburguesamento" não foi completo, é claro, quando ainda hoje temos a burocracia estatal funcionando como uma pseudo-aristocracia, contra a cooperação mercantil. Existem sempre pessoas dispostas a trocar uma dura vida de dependência do mercado, onde existe uma necessidade de produzir coisas que outras pessoas valorizem, para uma vida mais tranquila de viver às custas do Estado, onde a opinião dos outros não importa tanto (especialmente quando sobram alguns farelos).  Talvez o que é realmente natural no ser humano é uma busca por viver às custas de outros; de fato, a história sugere que a natureza do homem é mais Hobbesiana do que Smithiana. Mas "nada deve parecer natural", certo?

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

O apriorismo metodológico está no hardcore da escola austríaca?


Uma das teses metodológicas mais citadas como fundamentais e definidoras da escola austríaca, especialmente por economistas ligados ao Mises Institute, é a de que as proposições da economia são verdadeiras a priori do axioma básico da ação, e que tudo pode ser deduzido a partir desta proposição como verdades apodíticas. Este tipo de afirmação gera diversas críticas de economistas, principalmente dos ligados as correntes ortodoxas, de que a EA possui um viés anti-empírico e não falseável, tornando-se assim uma pseudociência.

Uma das melhores fontes para a compreensão desta posição é o artigo de Murray Rothbard, “In Defense of Extreme Apriorism”. Sem entrar na discussão sobre se este “apriorismo extremo” deve ou não ser aceito metodologicamente, esse post visa apenas analisar se realmente este tipo de método é algo que compõe o hardcore do programa de pesquisa identificado como escola austríaca. Analisemos autores importantes da escola austríaca:

Primeiro, Friedrich Hayek, que com certeza não é um adepto do apriorismo radical defendido principalmente por Rothbardianos. Hayek, pelo contrário, talvez estivesse mais próximo da metodologia da Karl Popper do que a da suposta metodologia austríaca definitiva. É possível argumentar que Hayek rompeu com qualquer simpatia com o apriorismo no seu artigo Economics and Knowledge, publicado na Economica em 1937. Neste artigo, Hayek escreve, por exemplo:

I have long felt that the concept of equilibrium itself and the methods which we employ in pure analysis have a clear meaning only when confined to the analysis of the action of a single person and that we are really passing into a different sphere and silently introducing a new element of altogether different character when we apply it to the explanation of the interactions of a number of different individuals.

Hayek deixa bem claro que o raciocínio puramente a priori, algo que ele chama de “Pure Logic of Choice”, não se aplica muito bem ao analisar ações de diversos indivíduos cujas ações tornam-se interdependentes em uma sociedade complexa. Hayek questiona até onde realmente um raciocínio puramente abstrato pode ser utilizado para interpretar uma realidade complexa, e isto o distancia muito do apriorismo extremo. É possível argumentar que Hayek era quase um Popperiano, com exceção de seu ceticismo quanto à viabilidade do falsificacionismo em ciências “complexas” como a economia, onde as previsões tem tão pouca força, dado o vasto leque de possibilidades que podem ser acarretadas de uma única ação. Hayek, portanto, não era um defensor do apriorismo radical. Se a adoção do apriorismo radical for uma condição necessária para um economista ser um “austríaco”, logo Hayek não era um, e isto é algo que alguns Rothbardianos certamente concordam. Mas analisemos outros dois economistas: Menger e Mises.

Carl Menger é conhecido como fundador da escola austríaca, e é impossível dizer que o próprio não é um “austríaco”. Menger talvez fosse mais adepto da teoria pura e a priori (o que ele chamava de “leis exatas”) do que Hayek, mas mesmo assim, é complicado afirmar que Menger fosse um adepto do apriorismo radical. Primeiro, é importante sempre lembrar a ligação que Menger possuía com a escola histórica alemã. Apesar de esta relação ser mais conhecida pela Methodenstreit, os Princípios de Economia Política foram dedicados a Willhem Roscher, um eminente professor da escola histórica. Menger não se via como um inimigo dos historicistas alemães, mas alguém trabalhando dentro desta própria tradição, melhorando-a ao adicionar algum marco analítico.

Por exemplo, uma das maiores contribuições Mengerianas a economia, e com certeza pela qual ele é mais lembrado, é a sua descrição do processo pelo qual surge a moeda. Apesar de ser um exercício de “armchair reasoning”, tal processo não é algo a priori verdadeiro. Não existe uma dedução que saia do axioma da ação para a existência de moeda. O surgimento da moeda em uma sociedade é muito mais um argumento evolucionista do que um argumento racionalista. O próprio Menger admitia que sua teoria do valor, ou da formação dos preços, teria sido desenvolvida com base na experiência empírica que Menger teria tido enquanto trabalhava como jornalista econômica. Algo muito empirista para um “austríaco”.

Ludwig von Mises, enfim, é o mais próximo de um adepto do “apriorismo extremo”. Mas mesmo Mises admite certos argumentos evolucionários na sua argumentação sobre a origem de categorias apriorísticas. Além disso, é importante notar duas coisas: 1) Mises era, antes de tudo, um Mengeriano. O que foi dito sobre Menger é aplicável também ao trabalho de Mises. Por exemplo, nos capítulos 14 e 15 de Ação Humana é possível identificar alguns argumentos não derivados logicamente do axioma da ação, que possuem um viés histórico muito importante, como por exemplo, a ideia do mercado como um processo. 2) A importância dada por Mises ao verstehen , ou understanding. Mises também foi muito influenciado pelo trabalho de Max Weber, cuja metodologia era bem diferente de um apriorismo radical.

O apriorismo metodológico, é, portanto, algo menos unânime dentro da escola austríaca do que as vezes parece. Por exemplo, um economista como Frank Knight, sempre um crítico da escola austríaca, está mais próximo da metodologia defendida por Rothbard no artigo citado no início deste texto do que Hayek, por exemplo.

A pergunta que surge então é, quais seriam as características mais importantes da escola austríaca? Aquelas que definem o programa de pesquisa da escola como algo único comparado a outros projetos. Esta é uma pergunta muito complicada, e que possui uma extensa bibliografia sobre, mas eu tenderia a escolher três características principais: Subjetivismo metodológico, reconhecimento da existência de incerteza genuína (algo compartilhado com o programa pós-keynesiano) e, o mais importante, a compreensão do mercado como um processo.