segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Porque políticos ruins se reelegem?






Porque determinados políticos, reconhecidamente maus gestores e/ou corruptos, continuam a se reeleger continuamente e ter relevância política no Brasil? Alguns casos são bastante emblemáticos neste sentido, por exemplo Paulo Maluf e Anthony Garotinho, que mesmo sendo reconhecidos pelo público como símbolos da corrupção na política estiveram entre os candidatos mais votados a deputado em São Paulo e no Rio de Janeiro. O mesmo acontece no resto do Brasil, com figuras como Sarney e Collor, e ainda em menor escala, com políticos menos conhecidos, mas entretanto que continuam a se reeleger a despeito de fazerem um trabalho publicamente considerado ruim. Porque, ao mesmo tempo em que o Congresso e o Senado têm uma credibilidade baixa com o público, estes também têm uma taxa de renovação sempre baixa a cada eleição? Tais perguntas não possuem respostas simples. Colocarei aqui um ponto de vista particular, uma visão bastante “economista” do caso, que acredito ser capaz de melhorar um pouco o entendimento deste fenômeno contraditório.

Um dos conceitos favoritos de economistas da public choice é a ideia de "ignorância racional". Isto se refere a uma situação onde um agente decide racionalmente ser ignorante sobre um assunto, porque os custos de aprendizado superam os benefícios do conhecimento. Por exemplo, apesar de eu querer aprender árabe, os custos de passar alguns anos estudando esta língua não são suficientes para justificar um desejo com pouca aplicação (portanto eu sou racionalmente ignorante em árabe). Este conceito pode ser aplicado ao comportamento de eleitores: ao mesmo tempo em que o voto individual de um eleitor tem probabilidade próxima de zero de alterar o resultado das eleições, existem custos associados a pesquisar candidatos, assistir horário eleitoral, decidir sobre quais propostas são melhores para a sociedade, e finalmente decidir quais são os melhores candidatos. Existe, portanto, uma tendência de eleitores a serem racionalmente ignorantes em política.

Ao mesmo tempo em que existem poucos incentivos a uma escolha cuidadosa dos candidatos, no Brasil existe um incentivo a votar em alguém, que é a obrigatoriedade do voto. Existem três opções para um eleitor "racionalmente ignorante" em política: (1) abster-se de votar; (2) votar em branco, nulo; e (3) votar em qualquer um. As três opções possuem custos associados praticamente idênticos, que é o custo de se deslocar até uma seção eleitoral e justificar/anular o voto/votar em qualquer um. A escolha (3) pode parecer a mais persuasiva para alguns agentes, pelo apelo a uma suposta "participação na vida política do país", apesar dos dados relativos a abstenções e votos não-válidos sugerirem que os agentes são indiferentes entre as três opções.

Tal convergência de incentivos pode explicar dois fenômenos comuns na política nacional: (1) a eleição de figuras públicas sem nenhuma preparação política, como Tiririca, Romário e a Mãe Loura do Funk; e (2) a reeleição de figuras políticas já conhecidas, mesmo com má reputação. Vamos nos concentrar no segundo caso, que é sobre o que se trata este post.
Rouba, mas faz
Uma primeira possível explicação é uma decorrência direta da "ignorância racional" que é característica em democracias representativas. O eleitor conhece um número limitado de candidatos e propostas, geralmente os políticos mais conhecidos por realizarem determinadas obras, e não tem incentivo para buscar outro tipo de informação. Se o eleitor parte do pressuposto que os defeitos de um determinado político não são particulares, mas sim característica geral da categoria, realizações ligadas a uma figura são suficientes para que o eleitor decida o seu voto. Ou seja, ao mesmo tempo em que os defeitos de um político não são suficientes para uma "diferenciação do produto", estar ligado a uma grande obra pode ser um bom atalho para uma vitória política. Um exemplo clássico é o discurso do deputado Paulo Maluf, ou o discurso que reelegeu Cesar Maia algumas vezes.

Ele é ladrão, mas os outros também são. Pelo menos esse a gente conhece

Outra explicação está relacionada a aversão ao risco e a incerteza que a mudança política traz. Pode ser possível argumentar que a configuração do sistema político brasileiro ajuda a aumentar esta incerteza. A falta de um programa claro vindo dos múltiplos partidos aumenta a dificuldade em prever o governo de novos políticos. Enquanto, por exemplo, nos Estados Unidos é possível fazer uma previsão com boa precisão sobre as diferenças de políticas entre um governo Republicano e Democrata (mesmo que tais diferenças não sejam lá muito grandes), não existe nenhuma característica institucional que possa prever, digamos, um governo do PSB. Outra possível interpretação é que a homogeneidade entre políticos e partidos gera uma indiferença na escolha dos candidatos que torna a incerteza do novo, mesmo que não seja grande, suficiente para atuar como diferenciador.

Asfaltou a minha rua, voto nele pra sempre, independente de qualquer  fato novo que venha a ocorrer

Finalmente, uma terceira explicação está relacionada a dois outros conceitos também relativos a public choice, que é a relação entre votos decididos com base em privilégios privados, seja no âmbito individual ou de classe, com a idéia de "irracionalidade racional". Assim como um agente pode ser racionalmente ignorante, também é possível que a tomada de decisões "irracionais" possa ser uma decisão racional em determinada circunstâncias. Esta é uma ideia um pouco mais difícil de ser expressa em poucas linhas, mas basicamente se os custos associados a uma escolha ruim são baixos ou difusos, ao mesmo tempo em que os custos associados a tomar uma decisão racional (buscar todas as informações necessárias e perder tempo pensando em uma solução sensata) são altos, pode ser "racional" tomar uma decisão "irracional".

Como os custos de ter um político ruim são essencialmente custos difusos para toda a população, a "irracionalidade racional" pode ser aplicável, o que é uma boa explicação para porque tantos eleitores tomam decisões claramente ruins repetitivamente (de fato, é uma explicação muito mais persuasiva do que "o povo é burro"). Geralmente esse tipo de escolha ruim vem associada a um tipo de clientelismo: ao dar algum privilégio ou benefício a um determinado eleitor, o político ganha o voto dele por diversas eleições, mesmo que o fluxo de benefícios não seja contínuo. O eleitor economiza tempo e "utilidade" ao manter o mesmo voto por várias eleições, e mesmo que sua escolha seja ruim, os custos associados a isto são muito dispersos.

A reeleição de políticos ruins é decorrente de falhas institucionais do sistema político. A pergunta que surge é se existem possíveis correções nos incentivos que possam reduzir este tipo de ocorrência, ou se o sistema está fadado a produzir este tipo de resultado. Independente de qual seja a resposta, ela só pode ser obtida com uma compreensão minuciosa dos arranjos institucionais e suas falhas presentes.




sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Da não naturalidade do capitalismo


Depois de ter falado sobre porque acho que defender o capitalismo com base na sua eficiência é um erro, vou escrever sobre um outro erro, um pouco menos comum, mas entretanto muito explorado pelos críticos. Este erro é defender o sistema capitalista como algo inerente à natureza humana. Do lado dos defensores, este tipo de erro muitas vezes está associado ao jusnaturalismo: muitas vezes existe uma confusão entre defender que a propriedade privada é um direito natural com que o sistema de mercado seja natural. A existência de propriedade privada não é suficiente - apesar de necessária - para que uma sociedade aproveite a liberdade e prosperidade trazidas por uma adesão ao que pode ser chamado de capitalismo, ou sistema de livre mercado. Apesar das ideias sobre o direito natural não me persuadirem muito, não acredito que seja incompatível defender tal ponto e ao mesmo tempo entender que o capitalismo não é algo da natureza do ser humano. Vou tentar argumentar rapidamente por que não acredito que o capitalismo seja algo "natural".

O jusnaturalismo não é o único motivo pelo qual tal argumento é utilizado. Podemos lembrar, por exemplo, do argumento de Adam Smith de que o homem possuiria uma tendência natural de realizar trocas, pela capacidade única de falar que o ser humano possui. Primeiro, o ato de troca também não é algo suficiente para a existência do que pode ser chamado de capitalismo. Tanto troca quanto propriedade privada são coisas que existiram praticamente em toda a história da humanidade. O mesmo não é verdade sobre o capitalismo.

Historicamente, o que pode ser observado é que algo ocorreu com a humanidade a partir de meados do século XVIII, algo espetacular que tirou o mundo de uma eternidade de miséria para um crescimento estrondoso.

Algo não natural ocorreu no final do século XVIII. O capitalismo mostrou que nada é impossível de mudar.
Ao mesmo tempo em que a renda per capita disparou, a população mundial também explodiu

 O "capitalismo" foi uma quebra de paradigmas que ocorreu inicialmente no noroeste europeu e que se espalhou posteriormente por (quase) todo o mundo. O que fez com que este crescimento exponencial pudesse ser observado foi uma maré de inovações, criando um aumento de produtividade constante que continua a crescer até hoje (mesmo em períodos de crise). Tais inovações foram geradas por indivíduos que queriam mudar o presente em que viviam, alterar uma natureza de miséria. A natureza inovativa que é essencial ao capitalismo é, de certa forma, anti-natural.

Entender que o capitalismo não é algo natural também é importante para entendermos que não necessariamente estamos vivendo no melhor sistema possível. É possível mudar para melhor, e uma atitude progressista é desejável. Entretanto é necessário entender o que permitiu este crescimento para que o progresso seja tomado de fato na direção certa. O importante, portanto, é tentar entender qual foi a grande mudança que ocorreu no final do século XVIII e que permitiu tal mudança dramática de paradigma da condição natural humana que era a miséria absoluta, para que assim possa-se seguir mudando em direção a algo melhor. Esta mudança, pelo o que a minha leitura sugere, decorreu de uma alteração de ideologia - saindo da falta de mobilidade de classes, dividida entre uma aristocracia e uma classe servil, comum em todas sociedades antigas, em direção a uma mentalidade de busca da prosperidade através do mercado, um processo de "aburguesamento" da sociedade. Uma mudança do modo de ganhar a vida do guerreiro (ou do jogo de soma zero) para o modo de ganhar a vida do burguês (através de mútuos ganhos pela cooperação mercantil) foi o grande promotor desta mudança observada nos gráficos.

Este "aburguesamento" não foi completo, é claro, quando ainda hoje temos a burocracia estatal funcionando como uma pseudo-aristocracia, contra a cooperação mercantil. Existem sempre pessoas dispostas a trocar uma dura vida de dependência do mercado, onde existe uma necessidade de produzir coisas que outras pessoas valorizem, para uma vida mais tranquila de viver às custas do Estado, onde a opinião dos outros não importa tanto (especialmente quando sobram alguns farelos).  Talvez o que é realmente natural no ser humano é uma busca por viver às custas de outros; de fato, a história sugere que a natureza do homem é mais Hobbesiana do que Smithiana. Mas "nada deve parecer natural", certo?

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

O apriorismo metodológico está no hardcore da escola austríaca?


Uma das teses metodológicas mais citadas como fundamentais e definidoras da escola austríaca, especialmente por economistas ligados ao Mises Institute, é a de que as proposições da economia são verdadeiras a priori do axioma básico da ação, e que tudo pode ser deduzido a partir desta proposição como verdades apodíticas. Este tipo de afirmação gera diversas críticas de economistas, principalmente dos ligados as correntes ortodoxas, de que a EA possui um viés anti-empírico e não falseável, tornando-se assim uma pseudociência.

Uma das melhores fontes para a compreensão desta posição é o artigo de Murray Rothbard, “In Defense of Extreme Apriorism”. Sem entrar na discussão sobre se este “apriorismo extremo” deve ou não ser aceito metodologicamente, esse post visa apenas analisar se realmente este tipo de método é algo que compõe o hardcore do programa de pesquisa identificado como escola austríaca. Analisemos autores importantes da escola austríaca:

Primeiro, Friedrich Hayek, que com certeza não é um adepto do apriorismo radical defendido principalmente por Rothbardianos. Hayek, pelo contrário, talvez estivesse mais próximo da metodologia da Karl Popper do que a da suposta metodologia austríaca definitiva. É possível argumentar que Hayek rompeu com qualquer simpatia com o apriorismo no seu artigo Economics and Knowledge, publicado na Economica em 1937. Neste artigo, Hayek escreve, por exemplo:

I have long felt that the concept of equilibrium itself and the methods which we employ in pure analysis have a clear meaning only when confined to the analysis of the action of a single person and that we are really passing into a different sphere and silently introducing a new element of altogether different character when we apply it to the explanation of the interactions of a number of different individuals.

Hayek deixa bem claro que o raciocínio puramente a priori, algo que ele chama de “Pure Logic of Choice”, não se aplica muito bem ao analisar ações de diversos indivíduos cujas ações tornam-se interdependentes em uma sociedade complexa. Hayek questiona até onde realmente um raciocínio puramente abstrato pode ser utilizado para interpretar uma realidade complexa, e isto o distancia muito do apriorismo extremo. É possível argumentar que Hayek era quase um Popperiano, com exceção de seu ceticismo quanto à viabilidade do falsificacionismo em ciências “complexas” como a economia, onde as previsões tem tão pouca força, dado o vasto leque de possibilidades que podem ser acarretadas de uma única ação. Hayek, portanto, não era um defensor do apriorismo radical. Se a adoção do apriorismo radical for uma condição necessária para um economista ser um “austríaco”, logo Hayek não era um, e isto é algo que alguns Rothbardianos certamente concordam. Mas analisemos outros dois economistas: Menger e Mises.

Carl Menger é conhecido como fundador da escola austríaca, e é impossível dizer que o próprio não é um “austríaco”. Menger talvez fosse mais adepto da teoria pura e a priori (o que ele chamava de “leis exatas”) do que Hayek, mas mesmo assim, é complicado afirmar que Menger fosse um adepto do apriorismo radical. Primeiro, é importante sempre lembrar a ligação que Menger possuía com a escola histórica alemã. Apesar de esta relação ser mais conhecida pela Methodenstreit, os Princípios de Economia Política foram dedicados a Willhem Roscher, um eminente professor da escola histórica. Menger não se via como um inimigo dos historicistas alemães, mas alguém trabalhando dentro desta própria tradição, melhorando-a ao adicionar algum marco analítico.

Por exemplo, uma das maiores contribuições Mengerianas a economia, e com certeza pela qual ele é mais lembrado, é a sua descrição do processo pelo qual surge a moeda. Apesar de ser um exercício de “armchair reasoning”, tal processo não é algo a priori verdadeiro. Não existe uma dedução que saia do axioma da ação para a existência de moeda. O surgimento da moeda em uma sociedade é muito mais um argumento evolucionista do que um argumento racionalista. O próprio Menger admitia que sua teoria do valor, ou da formação dos preços, teria sido desenvolvida com base na experiência empírica que Menger teria tido enquanto trabalhava como jornalista econômica. Algo muito empirista para um “austríaco”.

Ludwig von Mises, enfim, é o mais próximo de um adepto do “apriorismo extremo”. Mas mesmo Mises admite certos argumentos evolucionários na sua argumentação sobre a origem de categorias apriorísticas. Além disso, é importante notar duas coisas: 1) Mises era, antes de tudo, um Mengeriano. O que foi dito sobre Menger é aplicável também ao trabalho de Mises. Por exemplo, nos capítulos 14 e 15 de Ação Humana é possível identificar alguns argumentos não derivados logicamente do axioma da ação, que possuem um viés histórico muito importante, como por exemplo, a ideia do mercado como um processo. 2) A importância dada por Mises ao verstehen , ou understanding. Mises também foi muito influenciado pelo trabalho de Max Weber, cuja metodologia era bem diferente de um apriorismo radical.

O apriorismo metodológico, é, portanto, algo menos unânime dentro da escola austríaca do que as vezes parece. Por exemplo, um economista como Frank Knight, sempre um crítico da escola austríaca, está mais próximo da metodologia defendida por Rothbard no artigo citado no início deste texto do que Hayek, por exemplo.

A pergunta que surge então é, quais seriam as características mais importantes da escola austríaca? Aquelas que definem o programa de pesquisa da escola como algo único comparado a outros projetos. Esta é uma pergunta muito complicada, e que possui uma extensa bibliografia sobre, mas eu tenderia a escolher três características principais: Subjetivismo metodológico, reconhecimento da existência de incerteza genuína (algo compartilhado com o programa pós-keynesiano) e, o mais importante, a compreensão do mercado como um processo.

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Milton Friedman: um agradecimento pessoal




To Janet and David [filhos de Milton Friedman] and their contemporaries who must carry the torch of liberty on its next lap  -   Dedicatória do livro Capitalismo e Liberdade


Nesta terça-feira, dia 31 de julho de 2012, são comemorados os 100 anos do nascimento do economista Milton Friedman. Friedman foi o vencedor do prêmio Nobel de economia de 1976, e um dos economistas mais importantes do século XX. Dado o nome deste blog, que evidencia a minha preferência pela escola austríaca e sua visão sobre o mercado como um processo e um espaço social, e a economia caracterizada pela sua heterogeneidade, e contra o equilíbrio geral e a macroeconomia, é plausível supor que eu não concorde muito com as idéias econômicas de Friedman, o que é quase verdade. Mesmo assim, Milton Friedman ainda é o meu economista favorito, aquele que eu utilizo como modelo do que eu gostaria de ser, e teve um papel muito importante na minha vida.

Conheci o trabalho de Friedman em 2009, quando ele infelizmente já havia nos deixado. Neste ano eu passava por um período complicado, quando ainda estava cursando engenharia, entretanto certo de que não queria ser um engenheiro. Apesar de estar certo que queria abandonar o curso, eu não conseguia enxergar nenhuma alternativa para o meu futuro. Buscando encontrar algo que eu realmente gostasse, freqüentei diversos cursos neste período, em áreas variadas. Um deles foi um debate sobre a crise que havia ocorrido há pouco, onde foi mencionada a explicação monetarista, que entre as explicações apresentadas no momento me pareceu a mais plausível.

Com isso, busquei algum livro de Milton Friedman para ler, e encontrei Capitalismo e Liberdade em um sebo. Este é o livro que mudou a minha vida, e que sempre que alguém me pede alguma indicação de leitura sobre economia eu o indico. Capitalismo e Liberdade é um livro capaz de lhe persuadir a cada página, e foi exatamente isto que aconteceu comigo. Antes de ler o livro, eu era apenas um leigo em economia, e na esquerda do espectro político. Após o livro, eu já era um liberal. Friedman conseguiu me persuadir de suas idéias não obstante toda a resistência que eu tinha a elas. Lembro-me como eu me revoltava toda vez que eu começava a ler um argumento, a favor do fim do salário mínimo, ou a favor do fim da educação pública, e tantos outros argumentos chocantes para um leigo de esquerda, e como mesmo assim logo ao fim do capítulo eu estava totalmente convencido de que Friedman estava certo.

Capitalismo e Liberdade não me transformou apenas em um liberal, mas também em um economista. Ali encontrei imediatamente o que eu queria ser. Depois de ler o livro, eu não tinha dúvidas de que eu deveria estar em um curso de economia, e desde que me transferi para o instituto de economia em nenhum momento esta dúvida surgiu. Se antes de ler Capitalismo e Liberdade nenhum curso da universidade me agradava, hoje eu pretendo continuar na universidade como pesquisador e professor, quem sabe até os 94 anos como Friedman.

A partir deste livro, busquei o Instituto Liberal no Rio, e foi lá onde encontrei as idéias de Mises e Hayek que acabei preferindo ao monetarismo de Friedman. Portanto, mesmo o fato de eu me considerar hoje um “economista austríaco” é graças a Milton Friedman. Assim que eu descobri Mises e Hayek, descartei completamente as idéias de Friedman, mas com a progressão dos meus estudos acabei percebendo que aqueles argumentos que eu lia anteriormente eram muito mais sofisticados do que eu poderia entender, e com certeza são ainda mais sofisticados do que eu posso compreender agora. Hoje já não descarto completamente as idéias de Milton Friedman, e diria até que prefiro suas teorias monetárias a de alguns austríacos, como Rothbard e autores que defendem 100% de reservas de ouro. Mas a lição mais importante que aprendi neste caso foi a da necessidade de manter sempre uma humildade quanto a grandes autores como Friedman, pois os argumentos são sempre mais sofisticados do que se possa imaginar.

A principal qualidade de Milton Friedman é sua capacidade de retórica, e é onde eu mais me espelho nele – costumo dizer que estaria realizado se algum dia obtivesse 10% de sua capacidade retórica. Ver ou ler Friedman argumentar é sempre fantástico, e é impressionante como ele é capaz de convencer pessoas. Ele jamais subestima o outro lado, não os trata como pessoas estúpidas, nem releva os argumentos contrários, repetindo sempre a mesma coisa. Ele se preocupa realmente em estabelecer uma conversa, um canal de troca de idéias, onde ele possa mudar a pessoa do outro lado, e onde ele possa mudar ao ouvir o outro lado também. Tampouco ele tem medo de enfrentar audiências hostis ao seu pensamento, algo que ele fez diversas vezes e pode ser visto em diversos vídeos na internet. E ele jamais perde o bom humor e a boa vontade ao responder todas as perguntas e críticas – por mais descabidas que elas sejam. E dado o profundo respeito que Friedman sempre dispensou aos seus adversários, poucas coisas me deixam mais irritado do que os constantes ad hominem descabidos contra Friedman, como os feitos por Naomi Klein mais recentemente.

Friedman é um modelo para mim, porque não só ele é um dos economistas mais inteligentes que já existiram, e um dos poucos que pode dizer que revolucionou a profissão, mas também é um dos intelectuais mais claros e concisos, além de um dos mais humildes e tolerantes. Mais que isso, Milton Friedman me deu uma identidade quando eu mais precisava, e toda a carreira que eu pretendo construir é devida a ele. Não existe nenhuma maneira de agradecer alguém por tudo isso, e um post em um blog definitivamente não é o suficiente. O que eu faço para retribuir é tentar ser um dos que carregam a tocha da liberdade na próxima volta. Desta maneira, sinto pelo menos que o livro que mudou a minha vida também foi dedicado para mim.

quinta-feira, 19 de julho de 2012

Mises: feminista?


Segue abaixo alguns trechos do livro Socialism (publicado em 1922, o que é importante ressaltar), onde Mises argumenta que a sociedade de mercado pode trazer igualdade para as mulheres nas relações com os homens, ao substituir a força pelo contrato voluntário nas relações interpessoais:


Unlimited rule of the male characterizes family relations where the principle of violence dominates. Male aggressiveness, which is implicit in the very nature of sexual relations, is here carried to the extreme. The man seizes possession of the woman and holds this sexual object in the same sense in which he has other goods of the outer world. Here woman becomes completely a thing. She is stolen and bought; she is given away, sold away, ordered away; in short, she is like a slave in the house. During life the man is her judge; when he dies she is buried in his grave along with his other possessions. With almost absolute unanimity the older legal sources of almost every nation show that this was once the lawful state of affairs.

(…)
Nowadays only one opinion is expressed about the influence which the "economic" has exercised on sexual relations; it is said to have been thoroughly bad. The original natural purity of sexual intercourse has, according to this view, been tainted by the interference of economic factors. In no field of human life has the progress of culture and the increase of wealth had a more pernicious effect. Prehistoric men and women paired in purest love; in the pre-capitalist age, marriage and family life were simple and natural, but Capitalism brought money marriages and mariages des convenances on the one hand, prostitution and sexual excesses on the other. More recent historical and ethnographic research has demonstrated the fallacy of this argument and has given us another view of sexual life in primitive times and of primitive races. Modern literature has revealed how far from the realities of rural life was our conception, even only a short while ago, of the simple morals of the countryman. But the old prejudices were too deep-rooted to have been seriously shaken by this. Besides, socialistic literature, with the assistance of its peculiarly impressive rhetoric, sought to popularize the legend by giving it a new pathos. Thus today few people do not believe that the modern view of marriage as a contract is an insult to the essential spirit of sexual union and that it was Capitalism which destroyed the purity of family life.

(…)
Where the principle of violence dominates, polygamy is universal. Each man has as many wives as he can defend. Wives are a form of property, of which it is always better to have more than few. A man endeavours to own more wives, just as he endeavours to own more slaves or cows; his moral attitude is the same, in fact, for slaves, cows, and wives. 

(…)
In order to protect legally the property of wives and their children a sharp line is drawn between legitimate and illegitimate connection and succession. The relation of husband and wife is acknowledged as a contract. As the idea of contract enters the Law of Marriage, it breaks the rule of the male, and makes the wife a partner with equal rights. From a one-sided relationship resting on force, marriage thus becomes a mutual agreement.

segunda-feira, 9 de julho de 2012

A equivocada retórica dos mercados eficientes








Um argumento popular entre libertários ao defender o livre mercado, especialmente entre economistas libertários, é o argumento da maior eficiência que o livre mercado gera na alocação dos recursos escassos. A burocracia do governo é altamente ineficiente, enquanto o mercado é dinâmico e racional. A ação governamental gera deadweight losses no mercado - algumas contas no quadro negro e isso pode ser até provado matematicamente, diria o economista. Em uma versão mais sofisticada, o governo não possui todas as informações necessárias para calcular a alocação ótima, pois para tal cálculo são necessários preços formados em um mercado livre de interferências. Tudo bem, tais afirmações não estão erradas. Entretanto eu quero argumentar aqui que o uso deste tipo de retórica para defender a liberalização dos mercados não é a mais adequada, por dois motivos (i) o mercado livre também não é TÃO eficiente assim, e (ii) a eficiência é apenas uma qualidade secundária do simples e óbvio sistema de liberdade natural.

Focar no argumento de que o mercado traz sempre um resultado ótimo não é a melhor ideia. Assim como qualquer estudante de economia é capaz de provar no quadro-negro que toda interferência governamental gera deadweight losses, qualquer um também é capaz de provar como a competição imperfeita gera resultados que não são ótimos. As únicas saídas possíveis neste caso são (i) tentar defender as irrealistas hipóteses de competição perfeita, (ii) aceitar que o mercado não é perfeitamente eficiente, ou que (iii) o ótimo walrasiano é completamente irrelevante para uma análise normativa da economia. Eu tendo a defender os últimos dois pontos.

Sim, o mercado não é perfeitamente eficiente, o que não é nenhum problema. Errare humanum est. O que diferencia a cooperação via mercado da cooperação política ou de outro gênero é que a primeira nos dá o feedback necessário para que possamos aprender com os erros. O argumento da eficiência ofusca uma das principais qualidades do mercado, que é a capacidade evolutiva. O mercado é uma boa forma de cooperação não porque os agentes tomam decisões maximizadoras ótimas, mas sim porque ele é uma instituição que nos entrega informações precisas com as quais podemos descobrir se acertamos ou erramos em nossas decisões.

Admitir que o mercado não é perfeitamente eficiente não é, portanto, um grande problema. Admitir isto não abre uma janela para o tipo de argumento de que é possível tentar melhorar a performance do mercado em busca de um ótimo walrasiano. Tentar buscar um ótimo walrasiano no mundo real é cometer a falácia (conforme notou o economista Fritz Machlup) da misplaced concretness. O ponto maximizador de utilidade é apenas uma abstração inatingível e inexistente.

Mas o ponto de equilíbrio ótimo não só é uma ficção inatingível, mas também é uma ficção indesejada. As hipóteses da competição perfeita são paralisantes: informação perfeita, produtos homogêneos, firmas irrelevantes, inexistência de lucros. No ponto de equilíbrio todas as trocas já foram realizadas, e portanto o mercado sequer é necessário (quer algo mais socialista do que isso? O caminho da revolução é a competição perfeita). O equilíbrio é um ponto estacionário, onde faltam as duas características mais importantes do sistema de livre mercado: o empreendedor e a inovação produzida por ele.

Economicamente, a grande vantagem do livre mercado não é sua capacidade de alocar recursos eficientemente. É sua capacidade de gerar inovações constantemente, quebrando paradigmas e gerando riqueza. O mundo moderno não foi gerado por alocações ótimas de recursos, mas por empreendedores e inventores que “deram os primeiros passos por novas estradas, armados com nada além de sua própria visão”, conforme Ayn Rand notou muito bem. A eficiência alocativa também é uma qualidade do livre mercado, ok, mas relativamente esta vantagem é muito menor do que a capacidade evolutiva única do mercado. Podemos pensar nisso como um exercício de vantagens comparativas (via Ricardo). O capitalismo é superior aos outros sistemas tanto por sua eficiência quanto pela sua capacidade de inovar; entretanto devemos nos especializar no argumento daquilo que possuímos maior vantagem comparativa, que é a inovação.

Então em termos puramente econômicos, já argumentei que a eficiência não é a principal qualidade do sistema de livre mercado. Mas se expandirmos ainda mais o escopo de nossa retórica, a eficiência se torna ainda mais irrelevante frente às outras qualidades do livre mercado. Seguindo Deirdre McCloskey, a prudência está longe de ser a principal virtude do capitalismo. Outras frentes muito menos exploradas, mas entretanto muito mais relevantes do que a simples eficiência são, por exemplo, a superioridade do capitalismo em prover igualdade, dignidade, e especialmente riqueza material aos menos favorecidos.

Defender o capitalismo por sua eficiência é defendê-lo usando uma de suas qualidades menos atrativas. Dentro do próprio escopo da economia é possível encontrar argumentos melhores do que a alocação ótima de recursos, e, se expandirmos o nosso escopo para as outras seis virtudes burguesas (temperança, justiça, coragem, esperança, amor e fé), é possível encontrar infinitos argumentos superiores ao argumento da eficiência. Paradoxalmente, o argumento da eficiência é ineficiente, pois não aloca de maneira ótima as melhores qualidades do capitalismo dentro da retórica.

domingo, 10 de junho de 2012

"O Processo" de Kafka - uma interpretação anarquista



Eu não sou nenhum crítico literário, então existem boas possibilidades de acabar escrevendo alguma besteira, mas, de qualquer jeito, vou colocar aqui (uma das) minhas leituras do livro "O Processo" de Franz Kafka. Um livro rico como este abre a possibilidade para diversas interpretações, as quais reconheço, mas aqui eu vou escrever apenas uma (rápida) interpretação "anarquista" do livro, que provavelmente está longe de ser a interpretação mais interessante. Entretanto, considerando a biografia e as preferências políticas do autor, acredito que seja um ponto de vista válido. Se é que existem interpretações "válidas", pois o livro, assim como a lenda contada na catedral, tenta fugir de todas as interpretações possíveis.

É registrado que Kafka possuía alguma simpatia pelas doutrinas anarquistas que existiam no contexto europeu da época, especialmente representadas pela figura de Prince Kropotkin. O livro "O Processo" pode ser visto como uma crítica a qualquer tipo de autoridade, mas acredito que represente uma crítica especialmente a autoridade estatal. O próprio processo seria uma alegoria ao Estado, enquanto o tribunal é formado pela sociedade que legitima o poder do estado.

O processo pode ser interpretado como uma alegoria do Estado, porque ele é a justificativa para que alguém possa entrar no quarto de Josef K. (ou de qualquer indivíduo) cedo pela manhã, invadindo a privacidade e o detendo, mesmo que não exista nenhum motivo razoavelmente explicado ou previamente acordado. O Estado, assim como o processo, é uma fonte de autoridade que tem o poder de reger alguém mesmo que este sequer saiba qual a justificativa para tal - se é que esta existe. É interessante ver como se desenvolve a atitude de K. frente ao processo; o livro inteiro é a história de como ele aos poucos vai aceitando a autoridade do processo.

A crítica a burocracia é muito clara, representada pelo ar sufocante nos sótãos onde ficam os cartórios do tribunal, onde as pessoas que não estão acostumadas costumam passar mal (enquanto os burocratas não conseguem se adaptar ao ar fresco). Outra crítica menos notada é quando Titorelli diz que existem cartórios em quase todos os sótãos - o fato de estarem nos sótãos e não nos porões não é uma coincidência. Outras críticas estão presentes no livro inteiro - uma das minhas favoritas é o parágrafo gigante do início do sétimo capítulo.

O filme de Orson Welles sobre o livro é bem interessante (especialmente pela atuação do Anthony Perkins), mas uma falha foi a falta de uma ênfase na profissão do Bloch - algo que é bem enfatizado por Kafka. Bloch é um comerciante, e ele é uma alegoria do efeito do Estado frente à iniciativa privada. Bloch (um nome sugestivo para quem está familiarizado com a escola austríaca) dorme por dias no quarto de empregada (uma outra alegoria excelente) do seu advogado, e seu processo está rolando a cinco anos, sem sequer ter iniciado. Bloch implora de joelhos por alguma notícia sobre seu processo, mesmo tendo em segredo outros cinco advogados - um bom comerciante entende de competição.

Uma pergunta interessante é: o que havia atrás das portas guardadas onde o homem do campo passou sua vida inteira esperando? Provavelmente nada. Lá dentro estaria a prova da nudez do rei. Entretanto, considerando a grande proteção conferida ao lugar e o brilho que emana de dentro, o homem do campo projeta que exista de fato algo importante do lado de dentro. Josef K, assim como o homem do campo, ao se deparar com toda a aceitação de seu processo por parte de outros, como o seu tio, por exemplo, e com o fato de que praticamente todos fazem parte do tribunal, acaba aceitando toda a legitimidade que ele negava no início.

Enfim, o final trágico de Josef K. não se dá porque este tentou desafiar o tribunal e seu processo. O fim é consequência do aceitamento final de K. sobre a legitimidade do processo.

quarta-feira, 6 de junho de 2012

Wikipedia; ou porque a ordem espontânea é superior ao ensino público gratuito de qualidade etc

Ordem espontânea - o tipo de ordem que emerge pela ação humana, mas não pelo desígnio humano - é um conceito abstrato e que nem sempre é fácil de ser visualizado. Felizmente, na era da internet, existem diversos exemplos de ordens espontâneas (ou emergentes) que brotam na web. Um bom exemplo são as redes sociais, como o Facebook. A blogosfera também é uma grande ordem espontânea. Todos os memes, que são bastante famosos ultimamente, são outros excelentes exemplos. Alguém poderia mesmo dizer que a internet por inteiro é uma grande ordem espontânea.

Acredito que o meu exemplo favorito de uma ordem espontânea muito bem sucedida é a Wikipedia. Se você quiser procurar uma palavra ou frase obscura, obter um rápido resumo sobre uma figura histórica, ou conhecer algo mais sobre um conceito político ou científico obscuro, graças a Wikipedia a ajuda está a apenas um clique do mouse. E tudo isso graças a uma horda de desconhecidos - através de diversas ações humanas propositadas, mas que tiveram um resultado final que não foi planejado por nenhuma mente ou grupo de mentes específico.

A própria história da Wikipédia é uma mostra de como a ordem espontânea pode ser superior a ordem planejada, mesmo que o planejamento seja feito por um grupo de pessoas altamente qualificadas. Segundo o artigo sobre a Wikipedia no próprio site, "A Wikipedia começou como um projeto complementar a Nupedia, um projeto de enciclopédia online gratuita de língua inglesa cujos artigos eram escritos por especialistas e revistos em um processo formal". Você já tinha ouvido falar da Nupedia? Eu também não. Nem sempre um grupo de especialistas e um processo formal são melhores do que um caos de contribuições anônimas.

É claro que, pelo seu processo de produção anárquico, é possível encontrar diversos erros em certos artigos da Wikipedia - assim como diversas empresas erram e quebram todos os dias. Isto não é o suficiente para, assim como algumas pessoas costumam fazer - rejeitar todo o trabalho feito pelo site. É claro que a Wikipedia não é nenhuma bibliografia altamente confiável a ponto de ser utilizada como referência em um artigo acadêmico, entretanto ela ainda é extremamente valiosa, mesmo para pesquisas acadêmicas, nem que seja como forma de fazer uma pequena introdução de um conceito desconhecido antes de uma pesquisa mais profunda, ou como fornecedora de palavras chave úteis para a pesquisa. Sem contar que - assim como o mercado - existem incentivos para que os erros sejam eliminados, dado que qualquer um ao detectar um erro pode corrigi-lo.

Um dos fundadores da Wikipedia, Jimmy Wales, estava ciente do poder de uma ordem espontânea como forma de coordenação de um conhecimento disperso. Wales, um libertário e admirador confesso do trabalho de Ayn Rand, afirmou que a sua inspiração veio do artigo do economista austríaco Friedrich Hayek: O uso do conhecimento na sociedade (artigo que pode ser lido em  http://www.ordemlivre.org/2008/09/o-uso-do-conhecimento-na-sociedade/ ).

A bandeira que vem sendo defendida hoje como forma de salvar a educação é a de "10% do PIB para a educação gratuita, de qualidade, universal, e diversos outras qualificações (já vi até "laica", como se já não fosse). A questão é que não é um aumento de gastos que é capaz de melhorar a educação. Não tenho medo em dizer que a Wikipedia fez muito mais pela educação brasileira do que um aumento desses gastos faria. O canal de evolução de um serviço é a inovação, e a Wikipedia é o melhor exemplo atual de uma grande inovação trazendo excelentes benefícios e melhorias para um serviço educacional. Por definição, não é possível planejar uma inovação - afinal se você sabia sobre ela previamente, logo não é inovação nenhuma. Uma evolução através do planejamento estatal não é o desejável (se é que é possível). O necessário é diminuir as barreiras (por exemplo, liberando o homeschooling), para que as próprias pessoas possam descobrir melhores maneiras de como se educarem.

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Por que estudar economia?




"We do not  need to understand economics in order to experience the benefits of freedom of exchange and production. But we may very well need to understand economics in order to sustain and maintain the institutional framework that enables us to realize the benefits that flow from freedom of exchange and production" - Peter Boettke



"Afinal, se o mercado consegue resolver tudo sozinho, então porque você estuda economia?". Esta é uma crítica que já escutei mais de uma vez pelas minhas defesas do livre mercado. Tal crítica possui uma lógica: se não podemos melhorar os mercados através de planos econômicos centrais, se no fim das contas tudo o que tentarmos vai acabar por piorar a situação de livre mercado, então porque perder tempo com economia? Não seria melhor se somente ignorássemos tudo isto e vivêssemos felizes para sempre confiando no mercado?

Acredito que é possível simplificar os enfoques do estudo da economia em duas correntes: a liberal e a mercantilista. A crítica acima é uma excelente demonstração do segundo enfoque. Para quê serve a economia? O mercantilista responderia: para podermos melhorar a nossa situação através do conhecimento de maneiras de melhorar o funcionamento da própria economia. Assim, é possível agir de modo a melhorar o próprio sistema de mercado e as instituições econômicas, criando um mundo mais próspero e justo.

Enquanto liberal, eu discordo completamente desta visão. E acho engraçado o fato de pessoas que concordem com este tipo de abordagem por vezes não conseguirem sequer enxergar a possibilidade de uma alternativa. A motivação deste post é exatamente dar uma resposta liberal para a pergunta central: Afinal, por que estudar economia?

Na metade do século XIX, o economista liberal francês Frédéric Bastiat escreveu sobre a Paris de sua época, onde viviam centenas de milhares de pessoas, cada uma consumindo uma grande variedade de bens, que na maioria das vezes sequer eram produzidos dentro da cidade (como alimentos). Paris dependia (e ainda depende) de um vasto influxo diário de bens - porém não havia (e ainda não há) uma única agência que planejava a entrada de todos os bens necessários. Surpreendentemente, todos os dias, todos os bens necessários chegavam à cidade, em quantidades aproximadamente corretas.

Bastiat refletiu sobre o evento escrevendo o seguinte: "A imaginação se engana quando tenta apreciar a vasta multiplicidade de bens que devem entrar amanhã, a fim de preservar os habitantes de caírem em convulsão de fome, rebelião e pilhagem. (...) Contudo, todos dormem, e seus sonos não são perturbados um único minuto pela perspectiva de tal terrível catástrofe." Pense no que Bastiat escreveu, e o quanto isto era verdade e incrível na Paris de 1850, e como isto é ainda mais verdadeiro e impressionante nas cidades atuais, como São Paulo, por exemplo, onde a quantidade de habitantes e diversificação de bens é infinitamente maior do que na relativamente pequena Paris do século XIX.

A complexidade do sistema de distribuição é assustadora, conforme expôs Bastiat, mas pense também na complexidade do sistema de produção. Por exemplo, a simples, porém brilhante, constatação de Leonard Read em 1958 de que não existe uma única pessoa sequer no mundo capaz de criar um simples lápis. Para produzir um lápis, a primeira coisa necessária a se fazer é conseguir madeira. Para tal, é necessário cortar uma árvore. Para cortar uma árvore, é preciso um machado ou uma serra. Para fazer uma serra, é necessário aço, que por sua vez precisa de ferro, que precisa ser retirado de uma mina. Imagine quanto tempo seria necessário para que uma pessoa pudesse conseguir obter a madeira necessária para fabricar um simples lápis - sem contar todas os outros insumos necessários, como o grafite, a borracha que fica na ponta, o metal que une a borracha com o lápis, e outros insumos que eu sequer sei quais são. Mesmo assim, qualquer um pode ter um lápis pelo preço de algumas moedas, que às vezes sequer prestamos atenção no fundo do bolso. A brilhante retórica de Milton Friedman explicando tal complexidade pode ser vista no vídeo: http://www.youtube.com/watch?v=jgK11FkBJ0U

O processo de produção de qualquer bem dura alguns meses, e em alguns casos, como por exemplo, para produzir um café, mais de anos. Entretanto, é possível tomar um café na esquina a qualquer momento por um preço irrisório. Alguém terá plantado uma muda de café alguns anos atrás para que você pudesse fazer isto.

O objeto de estudo do economista é este sistema capaz de coordenar de maneira tão complexa tantas ações humanas, que é o sistema de mercado. Enquanto um mercantilista enxerga a profissão de economista como um engenheiro social, o liberal enxerga o economista como um investigador, alguém que tenta compreender o mistério da coordenação e cooperação humana via mercado, que ocorre mesmo sem os participantes perceberem o que está acontecendo.

O fato de não podermos mudar certas leis econômicas como a lei da oferta e da demanda ou a lei da utilidade marginal decrescente não é contraditório com o estudo da disciplina, assim como o fato de um físico não poder mudar a lei da gravidade não é contraditório com o estudo da física. Um economista deve estudar o funcionamento do sistema de mercado para, ao contemplar sua inacreditável complexidade, admitir em um gesto de humildade socrática que ele só sabe que nada sabe, e que tentar planejar instituições sociais humanas é uma pretensão a qual nenhum homem pode ter a ousadia de possuir.

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Um comentário sobre a greve dos professores

                


            Recentemente os professores das universidades federais iniciaram uma mobilização de greve, que incluiu hoje a minha própria faculdade. Já que agora eu estou sem aulas mesmo, tenho um pouco mais de tempo para escrever o que eu penso sobre isto aqui. Não pretendo ficar falando sobre a posição óbvia libertária sobre o assunto (toda greve voluntária é legítima, desde que não inclua piquetes, e não obrigue o patrão a pagar os dias não trabalhados, etc), nem sobre se eu acho que a greve é um bom instrumento para pressionar o governo (greve é muito século XIX, deviam inovar um pouco mais), mas sim sobre o porquê deste tipo de evento ocorrer.
            Não é nenhum exagero afirmar que praticamente toda greve ocorre ou em setores estatais ou em setores com alto nível de corporativismo. O motivo disto me parece um tanto óbvio; quando os salários deixam de ser definidos via um processo de mercado, todas as negociações tornam-se brigas políticas. E brigas políticas não se resolvem jamais de maneira pacífica – sem perdas e lucros, os critérios deixam de ser econômicos e passam a ser apenas quedas de braço de poder. E em processos políticos a única coisa que importa é o poder de um grupo de interesse, de modo que a única saída possível torna-se um enfrentamento de sindicatos com patrões/estado.
            Algo que acho muito curioso e que ilustra perfeitamente o meu argumento é o contínuo uso da palavra “luta” em todas as mobilizações sindicais. A palavra utilizada é precisa – todos os tipos de negociações quando deixam de ser feitas no mercado e passam para um âmbito político deixam de ser uma cooperação e passam a ser uma luta. Ganhos mútuos se transformam apenas em um jogo de soma zero. As greves, portanto, são meras conseqüências do sistema corporativista em que vivemos hoje.
            Os sindicatos são a reação dos professores ao poder do governo em determinar unilateralmente os salários. É claro que os sindicatos não são instituições libertárias antiestado, afinal geralmente estes possuem benefícios políticos que uma associação puramente voluntária não sonharia em possuir. Nem estou aqui defendendo os sindicatos. A questão é que estes possuem dentro da negação do processo de mercado feita pelo corporativismo os incentivos para atuar de maneira coercitiva como os seus patrões.
            A busca por um salário “justo” não é possível. Assim como alguns escolásticos espanhóis já haviam argumentado no século XV, e que a tradição liberal levou em frente, não existe um preço “justo”, e salários não são nada mais do que o preço do trabalho. Somente atos da ação humana propositada podem ser considerados justos ou não, e preços são frutos da ação humana não propositada, portanto não existe “justiça” nos preços.
            Com a impossibilidade de definir um salário objetivamente justo, as brigas entre patrões e empregados tornam-se intermináveis e não podem possuir um lado vencedor. O que deve ser defendido é a troca deste paradigma de conflitos pela definição dos salários pelo mercado livre. Controle de preços pelo governo sempre causam problemas (afinal não podemos possuir todas as informações necessárias para definir qual o preço “justo”) e o mesmo vale para salários.
            E com a existência de universidades controladas pelo poder coercitivo do estado, não pode existir um mercado verdadeiramente livre para professores. A bandeira a ser defendida não é a renovação do ciclo de conflito através da bandeira de “10% do PIB para a educação pública”. A bandeira que deve ser defendida é a de “0% do PIB para a educação pública”, e melhor ainda “0% de estado envolvido na educação”. As universidades públicas não precisam de mais investimentos do governo; elas precisam ser devolvidas aos seus donos, que são os professores e os funcionários que trabalham nela. 

quarta-feira, 2 de maio de 2012

O balão da política monetária

No ano passado tive a oportunidade de visitar New York, e uma das exposições que fui visitar foi a "Drachmas, Doubloons, and Dollars: The History of Money", da American Numismatic Society (afinal, quem não acha isso interessante?). Uma exposição fantástica que eu recomendo bastante (http://www.numismatics.org/Exhibits/DrachmasDoubloonsDollars), mas aqui o foco não é exatamente este. A questão é que a exposição fica dentro do Federal Reserve de NY, e, depois de conhecer diversas moedas históricas, entrei em uma sala que aparentemente servia para explicar o funcionamento do Fed para crianças de algumas escolas que deveriam visitar o museu.

Achei fantástica uma das instalações, que consistia em um jogo onde a criança representava o Fed, enquanto um balão representava toda a economia americana, com vários bonequinhos sorrindo dentro da cesta - que provavelmente representam os americanos, apesar de não ter certeza se eles realmente deveriam estar sorrindo. A proposta do jogo era a seguinte - o balão da economia estava em um ambiente instável, e ficava subindo e descendo autonomamente; o papel do jogador era controlar a altura do balão, usando a taxa de juros como instrumento. Ou seja, quando havia uma grande inflação e aquecimento da economia, o balão começava a subir e o jogador deveria rapidamente aumentar a taxa de juros - se o balão começasse a descer muito, isso representava uma deflação e uma desaceleração da economia que deveria ser combatida logo pela redução da taxa de juros.

É claro que essa é apenas uma alegoria para todos os complexos modelos de política monetária que o Fed e os bancos centrais usam, entretanto a idéia central é exatamente essa. Os planejadores acreditam realmente que a economia é um "balão instável" que deve ser sabiamente controlado graças a um suposto conhecimento privilegiado possuído por estes. O que achei fantástico e engraçado é que o próprio Federal Reserve é réu confesso da sua própria pretensão, e é exatamente esta posição de superioridade que é passada para as crianças que visitam o banco. Não é espantoso que hoje praticamente nenhum leigo consiga imaginar um mundo sem o governo tomando conta da moeda.

As questões relevantes que deveriam ser perguntadas (e tomara que algumas crianças que viram o joguinho tenham se perguntado sobre isso) são: Como saber exatamente se o balão está subindo ou descendo? E se a subida do balão for somente uma ilusão, como aquela quando pensamos que o nosso metrô está se movendo quando na verdade é o trem vizinho que se move? Como saber se a instabilidade do balão é realmente decorrente de ventos e instabilidade externa, ou se é só o homem controlando o fogo que não faz nenhuma idéia do que está fazendo? Pode alguém que está dentro da própria cesta do balão ter uma visão externa da trajetória deste superior aos outros?

Ou ainda a melhor pergunta a ser feita: Existe, de fato, algum balão?


sábado, 28 de abril de 2012

Igualdade racial por vias libertárias

"What I ask for the Negro is not benevolence, not pity, not sympathy, but simply justice. [Applause.] The American people have always been anxious to know what they shall do with us. (...) Everybody has asked the question, and they learned to ask it early of the abolitionists, "What shall we do with the Negro?" I have had but one answer from the beginning. Do nothing with us! Your doing with us has already played the mischief with us. Do nothing with us! If the apples will not remain on the tree of their own strength, if they are wormeaten at the core, if they are early ripe and disposed to fall, let them fall! I am not for tying or fastening them on the tree in any way, except by nature's plan, and if they will not stay there, let them fall. And if the Negro cannot stand on his own legs, let him fall also. All I ask is, give him a chance to stand on his own legs! Let him alone! If you see him on his way to school, let him alone, don't disturb him! If you see him going to the dinner table at a hotel, let him go! If you see him going to the ballot- box, let him alone, don't disturb him! [Applause.] If you see him going into a work-shop, just let him alone,--your interference is doing him a positive injury. (...) Let him fall if he cannot stand alone! If the Negro cannot live by the line of eternal justice, so beautifully pictured to you in the illustration used by Mr. Phillips, the fault will not be yours, it will be his who made the Negro, and established that line for his government. [Applause.] Let him live or die by that. If you will only untie his hands, and give him a chance, I think he will live. He will work as readily for himself as the white man. (...) the war has proved that there is a great deal of human nature in the Negro, and that "he will fight," as Mr. Quincy, our President, said, in earlier days than these, "when there is reasonable probability of his whipping anybody." [Laughter and applause.]"

Frederick Douglass, no seu discurso de 1865, "What the black man wants"

http://www.frederickdouglass.org/speeches/index.html


A discussão sobre a validade das cotas raciais nas universidades públicas voltou a ganhar força após a decisão do STF sobre a constitucionalidade de tais cotas. Não pretendo aqui discutir se esta decisão foi acertada ou não, mesmo porque não tenho competência jurídica suficiente para interpretar o que a constituição diz ou não diz. O que pretendo é discutir se este tipo de política deveria existir em primeiro lugar.

A primeira coisa que preciso enfatizar é que não discordo das intenções das cotas raciais. Não nego de modo algum que existe racismo no Brasil, e que isso tem um forte papel na falta de oportunidades para negros e que por sua vez isso constitui um forte motivo pelo qual a proporção de negros em universidades é menor do que a proporção de negros na população, enquanto a proporção de negros presos e/ou pobres é maior do que a proporção populacional. Entretanto as intenções não são suficientes para julgar uma política, na verdade elas são pouco relevantes. O que importa é o efeito.

As cotas raciais (e tudo o que for dito aqui pode ser estendido às cotas sociais também) nada mais são do que parte da cruel rotina do Estado de quebrar as pernas das pessoas para oferecerem a muleta depois. O principal efeito desta política é criar um elo de dependência dos negros com o Estado, tal qual o elo estabelecido previamente entre senhores e escravos. É interessante lembrar que um dos argumentos esdrúxulos contra a abolição da escravidão era de que os senhores tinham um papel imprescindível em "educar e civilizar" os escravos. As cotas raciais são a versão moderna deste argumento, trocando apenas um senhor por outro.

Outra coisa importante de ser ressaltada é que as cotas raciais NÃO são uma política que beneficia uma classe de negros que precisa de ajuda. As cotas beneficiam apenas alguns indivíduos desta classe, e que estão longe de serem os que mais precisam de algum apoio. Se seguirmos uma teoria Rawlsiana da justiça de existência de deveres em ajudar os "less fortunate" (não sei qual seria uma tradução boa deste termo) de uma sociedade, estamos claramente errando o alvo. Aqueles que são realmente mais excluídos, e têm pouquíssimas chances de prosperarem, não chegam a completar o ensino médio para poderem ingressar na faculdade. O custo de oportunidade de estudar tanto tempo para essas pessoas é alto demais. Os benefícios gerados pelas cotas são direcionados para a elite de uma classe desprivilegiada, o que não resolve um problema de desigualdade (muito pelo contrário).

Se quisermos realmente promover um ambiente de isonomia racial, temos que mirar toda a classe e não apenas uma minúscula parte dela. O que é preciso fazer não é entregar algumas muletas para uma dúzia e ficar com a consciência limpa; o que é necessário é parar de quebrar as pernas de todas as pessoas.

A tomada estatista contemporânea dos movimentos sociais que buscam defender minorias desprivilegiadas afastou os libertários deste tipo de causa. Não podemos, entretanto, esquecer que o nascimento do nosso movimento político sempre foi uma luta contra privilégios e a favor da igualdade - sempre entendida como isonomia, é claro - também. E acredito que a melhor solução para a desigualdade racial no Brasil seja a solução libertária, e por isso não podemos esquecer que existe este tipo de desigualdade. Dizer que não existe nenhum tipo de diferença de tratamento entre negros e brancos seria implicitamente dizer que os negros são inferiores - afinal seria a única explicação que sobraria para explicar as diferenças de proporção que mencionei no início do texto.

Então, afinal, como parar de quebrar as pernas dos negros? Como desamarrar as mãos deles e dar uma chance que eles caminhem com suas próprias pernas, como Frederick Douglass pediu no século XIX? Acredito que a principal frente a ser defendida é o fim da guerra contra as drogas; uma guerra que é claramente direcionada aos mais pobres, e, na maioria das vezes aos negros. Existe uma repressão maior a não-usuários de drogas que moram em favelas do que usuários que moram na zona sul, e isso não é mero acaso. Imagine quantas vidas são destruídas pelas prisões de jovens que trabalham como vapor, somente por participarem de uma troca voluntária que não agride ninguém? Imagine as oportunidades de crescimento se a polícia apenas os deixassem sozinhos, como pediu Douglass?

Outras políticas que seriam muito mais eficientes em diminuir a desigualdade racial do que as cotas seriam (a) acabar com a universidade pública "gratuita" (ênfase nas aspas) e (b) acabar com a exigência do diploma.

O ensino superior "gratuito" não existe - não existem almoços grátis afinal. Quem paga pela educação superior (que é muito cara por sinal) são exatamente aquelas pessoas que não vão estudar na universidade. Sim, se você está estudando em uma universidade pública quem está pagando para você fazer isso é aquele garoto que largou a escola na quarta série para trabalhar e ajudar os pais. Eu estudo em uma universidade pública e tenho bastante vergonha de admitir isso, mas é verdade. E forçar a entrada de alguns negros na universidade pública não resolve este problema. Conforme já argumentei, aqueles que mais precisam de ajuda não terminam o ensino médio, e definitivamente o que eles não precisam é pagar pelos estudos de pessoas que eles sequer conhecem, somente por compartilharem a cor da pele.

Acabar com a exigência do diploma é outro fator que ajudaria muito aquelas pessoas que não dispõem de condições de passar entre quatro e seis anos dedicadas a estudos somente para poderem trabalhar em algum emprego melhor assalariado. Muitas vezes o que acontece atualmente é que pessoas mais pobres são obrigadas a pagar uma universidade particular de quinta categoria, perder tempo assistindo aulas onde não aprendem nada relevante, somente para terem um diploma que lhes permite trabalhar em um ofício que poderia ser exercido mesmo sem todo o tempo gasto na universidade. A exigência de diploma é uma reserva de mercado elitista, que prejudica a tal isonomia desejada pelas cotas.

Existem outras diversas coisas a serem feitas, como acabar com a burocracia que empreendedores precisam enfrentar, o que permitiria que pequenos empreendedores informais em comunidades pobres pudessem ter certos direitos que infelizmente o Estado só permite que os que ele considera "legais" possam ter. Acabar com as interferências na relação empregador-empregado, pelo mesmo motivo acima. Garantir a propriedade das pessoas mais pobres, também reduzindo as exigências de escritura, alvará, e todas estas burocracias inúteis que também afetam muito mais as pessoas mais pobres. E, claro, reduzir impostos - afinal estes sempre recaem na parcela mais pobre da sociedade.

Conforme Frederick Douglass disse, se existir justiça, tudo o que precisamos fazer é deixar os negros sozinhos, porque eles são capazes de tomar conta de si mesmos. Infelizmente a justiça a qual Douglass se referia - igualdade perante a lei - não existe no Brasil, haja visto toda a diversidade de privilégios, proibições, e limitações a liberdade existentes na lei brasileira. Instituir novos privilégios, como as cotas (sejam raciais ou sociais), não ajudam de modo algum em garantir a igualdade perante a lei. Não precisamos de novos privilégios. Precisamos acabar com os existentes.



quarta-feira, 25 de abril de 2012

Aldous Huxley e conhecimento tácito

Nota: Conforme eu disse no primeiro post desse blog, as pessoas reagem a incentivos e até agora os meus incentivos não foram muito propícios para escrever aqui. Mas, enfim, vou tentar outra vez.

Um conceito o qual sempre achei um pouco difícil de assimilar é a idéia de conhecimento tácito, especialmente como descrito por Michael Polanyi. A idéia do autor é que podemos saber mais do que podemos dizer - ou seja, existem certos tipos de conhecimentos que possuímos que sequer compreendemos o suficiente para explicá-los. Em Hayek, isso pode ser expresso como os conhecimentos particulares de tempo e lugar, que são informações subjetivas que são exclusivamente individuais, exatamente porque não podemos passar este tipo de conhecimento para outras pessoas tão facilmente.

Hayek vai ainda mais além ao falar sobre a pretensão do conhecimento, que poderia ampliar o conceito do Polanyi de "podemos saber mais do que podemos dizer"  para "acreditamos saber mais do que aquilo que realmente sabemos, que ainda é mais do que aquilo que nós podemos dizer que sabemos", o que deixa as coisas ainda mais confusas.

Porque estou escrevendo isso? O último livro que li foi o A Ilha (Island), do Aldous Huxley, por indicação de um amigo. Em certa parte da história (que é muito boa e vale a pena ler, especialmente pra quem já leu Admirável Mundo Novo, porque existem várias referências que só quem leu AMN vai entender), o protagonista está visitando o sistema educacional da Ilha de Pala, e quando ele entra em uma sala de aula de Filosofia Elementar Aplicada para a 5ª série (só em Pala mesmo), o professor está ensinando algo muito parecido com o conceito de conhecimento tácito, de uma maneira razoavelmente esclarecedora, apesar de um pouco modificada. Segue abaixo o trecho (ênfases minhas):

"- Os símbolos são públicos - estava dizendo um homem ainda jovem próximo ao quadro-negro, no momento em que Will e Mrs. Narayan entravam na sala. Desenhou uma série de pequenos círculos e os números: 1, 2, 3, 4 e n. "Estes números representam o povo", explicou. Depois, partindo de cada um dos pequenos círculos, desenhou uma linha que os ligava a um quadrado existente à esquerda do quadro-negro. Escreveu um "S" no centro do quadrado. "S é o sistema de símbolos que o povo usa quando quer conversar entre si. Todos falam a mesma língua: inglês, palanês, esquimó, dependendo do local onde vivem. As palavras são públicas. Pertencem a todos os que falam uma determinada língua. Estão catalogadas nos dicionários. Observemos agora o que está acontecendo lá fora". Dizendo isso, apontou para uma janela aberta (...) O professor desenhou um segundo quadrado do lado oposto do quadro, marcou-o com a letra "A" (para designar acontecimento) e ligou-o aos círculos por meio de linhas. "O que acontece lá fora é público" - disse ele. "Quando alguém fala ou escreve, isso também é público. Mas as coisas que ocorrem no interior destes pequenos círculos são individuais. Individuais".

Pondo a mão sobre o peito, repetiu: "Individual" - friccionou a testa e disse: - Individual. - Tocou as pálpebras e a ponta do nariz com o indicador - Agora vamos fazer uma experiência simples: Digam a palavra "beliscar". (...) Isso é uma palavra pública. Todos podem procurá-la no dicionário. Mas agora eu quero que vocês se belisquem. (...) Pode alguém sentir aquilo que o seu vizinho está sentindo?

(...)- Parece que houve vinte e três dores diferentes e independentes. Vinte e três somente nesta sala. Quase três milhares de milhões em todo o mundo, sem acrescentarmos as dores de todos os animais. Cada uma delas é estritamente individual. Não há nenhum modo de transferir a experiência de um centro da dor para outro. Nenhuma comunicação a não ser indiretamente através do "S"(...) Prestem atenção a isso: exige somente uma palavra pública, "dor", para designar os três milhares de milhões de experiêcias individuais, embora cada uma delas possa diferir tanto da outra quanto o meu nariz difere do de vocês (...). Uma única palavra define coisas e acontecimentos que pela sua natureza se assemelham entre si. E, sendo pública, é impossível que abranja todas as múltiplas variantes de um mesmo acontecimento."

Depois o professor conclui contando uma longa história budista sobre Mahakasyapa e o sermão da flor do Buda, uma história também iluminadora mas que não é necessário ser transcrita. É uma excelente passagem a ser citada para facilitar a explicação desse conceito - que também tem a sua parcela tácita que só pode ser compreendida individualmente, sendo impossível comunicar tudo o que forma a idéia.