domingo, 10 de junho de 2012

"O Processo" de Kafka - uma interpretação anarquista



Eu não sou nenhum crítico literário, então existem boas possibilidades de acabar escrevendo alguma besteira, mas, de qualquer jeito, vou colocar aqui (uma das) minhas leituras do livro "O Processo" de Franz Kafka. Um livro rico como este abre a possibilidade para diversas interpretações, as quais reconheço, mas aqui eu vou escrever apenas uma (rápida) interpretação "anarquista" do livro, que provavelmente está longe de ser a interpretação mais interessante. Entretanto, considerando a biografia e as preferências políticas do autor, acredito que seja um ponto de vista válido. Se é que existem interpretações "válidas", pois o livro, assim como a lenda contada na catedral, tenta fugir de todas as interpretações possíveis.

É registrado que Kafka possuía alguma simpatia pelas doutrinas anarquistas que existiam no contexto europeu da época, especialmente representadas pela figura de Prince Kropotkin. O livro "O Processo" pode ser visto como uma crítica a qualquer tipo de autoridade, mas acredito que represente uma crítica especialmente a autoridade estatal. O próprio processo seria uma alegoria ao Estado, enquanto o tribunal é formado pela sociedade que legitima o poder do estado.

O processo pode ser interpretado como uma alegoria do Estado, porque ele é a justificativa para que alguém possa entrar no quarto de Josef K. (ou de qualquer indivíduo) cedo pela manhã, invadindo a privacidade e o detendo, mesmo que não exista nenhum motivo razoavelmente explicado ou previamente acordado. O Estado, assim como o processo, é uma fonte de autoridade que tem o poder de reger alguém mesmo que este sequer saiba qual a justificativa para tal - se é que esta existe. É interessante ver como se desenvolve a atitude de K. frente ao processo; o livro inteiro é a história de como ele aos poucos vai aceitando a autoridade do processo.

A crítica a burocracia é muito clara, representada pelo ar sufocante nos sótãos onde ficam os cartórios do tribunal, onde as pessoas que não estão acostumadas costumam passar mal (enquanto os burocratas não conseguem se adaptar ao ar fresco). Outra crítica menos notada é quando Titorelli diz que existem cartórios em quase todos os sótãos - o fato de estarem nos sótãos e não nos porões não é uma coincidência. Outras críticas estão presentes no livro inteiro - uma das minhas favoritas é o parágrafo gigante do início do sétimo capítulo.

O filme de Orson Welles sobre o livro é bem interessante (especialmente pela atuação do Anthony Perkins), mas uma falha foi a falta de uma ênfase na profissão do Bloch - algo que é bem enfatizado por Kafka. Bloch é um comerciante, e ele é uma alegoria do efeito do Estado frente à iniciativa privada. Bloch (um nome sugestivo para quem está familiarizado com a escola austríaca) dorme por dias no quarto de empregada (uma outra alegoria excelente) do seu advogado, e seu processo está rolando a cinco anos, sem sequer ter iniciado. Bloch implora de joelhos por alguma notícia sobre seu processo, mesmo tendo em segredo outros cinco advogados - um bom comerciante entende de competição.

Uma pergunta interessante é: o que havia atrás das portas guardadas onde o homem do campo passou sua vida inteira esperando? Provavelmente nada. Lá dentro estaria a prova da nudez do rei. Entretanto, considerando a grande proteção conferida ao lugar e o brilho que emana de dentro, o homem do campo projeta que exista de fato algo importante do lado de dentro. Josef K, assim como o homem do campo, ao se deparar com toda a aceitação de seu processo por parte de outros, como o seu tio, por exemplo, e com o fato de que praticamente todos fazem parte do tribunal, acaba aceitando toda a legitimidade que ele negava no início.

Enfim, o final trágico de Josef K. não se dá porque este tentou desafiar o tribunal e seu processo. O fim é consequência do aceitamento final de K. sobre a legitimidade do processo.

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